Friday, October 21, 2005

O Amor Puro

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisapara dizer e não sei como hei-de dizê-la.
Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha.O que for incompreensível não é mesmo para se perceber.
Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco doque tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver umamor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito.Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não sechateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa.Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo deantemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-sesócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-senuma variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.
O amor tornou-se uma questão prática.
O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam"praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, doamor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namoradostão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazesde um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raçade telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem",tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas,matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguémaceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, omedo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração eque nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. Oamor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, ointervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorroda tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeioesta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos.Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice,facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal dapantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nossoamor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazerfelizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nossoamor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda deapanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra.A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amorpuro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. Oamor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como oclima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado dequem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar acorrer atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amoré uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, nãofaz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, avida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. Avida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre.Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muitodesesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante odia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nosacompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. Ésinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardara esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas maisacompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. Avida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Sóum minuto de amor pode durar a vida inteira.
E valê-la também.
Miguel Esteves Cardoso, in Expresso

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